O Jeitinho Brasileiro e a Tônica do Individualismo

Introdução

O Brasil é um país multifacetado e com uma história riquíssima. Alguns autores, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior já retrataram de forma brilhante a história e a formação do povo brasileiro, e livros como Raízes do Brasil, Casa Grande e Senzala e Formação Econômica do Brasil são leituras recomendadas para quem quer entender a história do Brasil, juntamente com obras como Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro.

A formação do caráter do brasileiro conta com vários fatores, dentre os quais a colonização portuguesa, a natureza absolutista do Estado português nos séculos XVI, XVII e XVIII, a miscigenação entre colonizadores, indígenas, escravos, e, mais tarde, imigrantes, a formação política do país e a abolição tardia da escravatura. Tudo contribuiu para que o Brasil fosse o país que é hoje, com as características que tem, para o bem e para o mal.

Alguns conceitos são amplamente conhecidos do grande público: a origem da corrupção e da burocracia brasileira no Estado absolutista português, descrita por Raymundo Faoro; o conceito de “homem cordial” brasileiro, que é visceral, não suporta formalidades e sente necessidade de estreitar laços, que ajudou a consolidar o Estado patrimonial brasileiro até a metade do século XX, abordado de forma brilhante por Sérgio Buarque de Holanda; ou a mistura de raças entre o Senhor de Engenho e seus escravos, colocado como fator determinante na formação do caráter do brasileiro por Gilberto Freyre.

No entanto, esse texto repousa seus olhos sobre um conceito mais específico, originado justamente na intolerância às formalidades descrita por Sérgio Buarque de Holanda: o “jeitinho” brasileiro.

A Origem e o Conceito

Primeiramente, devemos nos perguntar sobre o que é, exatamente, o “jeitinho brasileiro”, tão falado nas conversas informais pelo país. Para explicar isso, recorremos à origem da burocracia no pais, explicada no que Raymundo Faoro define como “o estamento burocrático no Brasil”.

O “estamento burocrático”, para Faoro, é a classe burocrática de um país, formada pela óbvia premissa de que um país não pode ser governado em uma democracia direta plebiscitária, e que, por isso, é necessária uma elite que governe o Estado em nome dos cidadãos. É, nas palavras de Faoro, “árbitro da nação, das suas classes, regulando materialmente a economia, funcionando como proprietário da soberania. As demais estratificações sociais, classes ou estamentos, são por êle condicionadas, carecendo de valor simbólico próprio. Aquelas não logram organizar-se impulsionadas pela necessidade telúrica, existem como “simples imitação e prática administrativas”. Um sôpro as deslocará, transformando-as em pó, sem que resistam a seu império.”

Cabe ressaltar que, para o autor, o estamento burocrático, como representante do povo, deve ser interlocutor e disseminador da manifesta vontade popular, sendo absorvido pelas necessidades nacionais e refletindo o que o povo deseja para o país.

No entanto, em Portugal e no Brasil, segundo o autor, o estamento burocrático, em virtude do histórico absolutista português, permaneceu descolado da vontade popular, representando interesses próprios e criando uma aristocracia própria, que foi exercido por muito tempo na forma de poder absoluto, e se adaptou ao novo estado democrático brasileiro:

“O estamento burocrático, por muitos séculos, assumiu a forma aristocrática, composta da nobreza togada e titulada. Com a vitória das idéias democráticas – vitória mais aparente que real – êle continuou a imperar sob outro molde, constituído de militares, bacharéis, médicos, enfim, altos funcionários públicos ou agentes do Estado em todos os seus poderes. O patronato político sôbre a nação persistiu, com alterações puramente formais, sem haver nunca se diluído no poder majoritário. O exercício da tutela administrativa é exercido mais pelos funcionários (inclusive os militares) do que pelo pessoal político, eleito e renovável pelo voto universal. Com aquêles está a tradição, a perenidade da tradição, encarnando o patriciado permanente e estável.”

A conclusão é que o governo não é exercido, na maioria de suas atribuições, pelos estadistas eleitos, mas por uma burocracia histórica que detém a expertise dos procedimentos de governo e os direciona para seu próprio favorecimento, muitas vezes utilizando-se de instrumentos formais para isso, como a Escola Superior de Administração Fazendária (ESAF) e o Instituto Rio Branco (IRB), que alimentam ideologicamente as burocracias historicamente consolidadas do Ministério da Fazenda e do Ministério das Relações Exteriores.

Faoro defende, como solução para este insulamento burocrático negativo, o conhecimento, por parte da população, das tarefas de governo, para que as mesmas não sejam restritas a um único grupo aristocrático e possam ser exercidas por qualquer um, através da consolidação da democracia como meio de participação popular.

Também é certo que o distanciamento entre o estamento burocrático e a população propiciou a generalização de uma visão de governo negativa, por parte da população. Essa visão negativa, por sua vez, leva o brasileiro a atuar à margem do governo, em clara fuga das formalidades estatais, tal como o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil. Nas palavras do autor:

“Formados nos quadros da estrutura familiar, o brasileiro recebeu o peso das relações de simpatia, que dificultam a incorporação normal a outros agrupamentos. Por isso, não acha agradáveis as relações impessoais, características do Estado, procurando reduzi-las ao padrão pessoal e afetivo

A origem do popular “jeitinho brasileiro” está aí. Ele é formado pela soma de dois importantes traços culturais do Brasil: o estamento burocrático insulado e sem contato com a população, e a tendência do brasileiro de reduzir as relações impessoais características do Estado ao padrão pessoal e afetivo.

Em sua definição, o jeitinho brasileiro nada mais é senão a busca de subterfúgios, à margem do Estado (e, muitas vezes, da lei) para fugir da formalidade e conseguir coisas que você normalmente não conseguiria, ou demoraria mais para conseguir.

As Conseqüências do “Jeitinho”

A ineficiência dos serviços estatais, o insulamento burocrático e a impaciência do brasileiro com formalidades levaram a propagação do “jeitinho brasileiro” em várias esferas da sociedade. Basicamente, a regra existe, mas pode ser burlada para benefício próprio. Aí nasce a propina, o suborno, o peculato, e os crimes tipicamente associados ao setor público. Mas o jeitinho brasileiro está muito mais arraigado na sociedade do que se imagina, e não é composto apenas por ações criminosas.

O jeitinho brasileiro é a manifestação da individualidade em seu estado mais degenerado. As regras existem, mas o favorecimento individual, através do “jeitinho”, é visto por muitos de maneira positiva. E isso ocorre mesmo nas coisas mais elementares da sociedade, como as filas de banco e os congestionamentos, por exemplo. A mentalidade do “jeitinho” suborna policiais, funcionários públicos, consegue diminuir prazos pagando “taxas extras”, e encarna o famoso bordão de que “brasileiro deve levar vantagem em tudo”. E isso degenera de maneira quase irremediável nossa sociedade.

Não é possível reclamar da corrupção no setor público se o cidadão contribui para isso. O jeitinho brasileiro faz com que haja uma inadmissível tolerância com a corrupção e com os favorecimentos ilícitos, nas empresas e no governo. Pelo motivo de que, para muitas pessoas, da mesma maneira que são prejudicadas pela corrupção hoje, são favorecidas em algum momento. O jeitinho brasileiro, burlando as regras, favorecendo o individual em detrimento do coletivo, já não é mais um procedimento: é um traço cultural do brasileiro.

A conseqüência óbvia disso é o enfraquecimento das instituições, que são as principais vítimas das iniciativas de corrupção. Quem aceita ser corrompido comete, a cada “jeitinho”, um atentado contra o país, contra a instituição que o emprega, e contra cada brasileiro. A generalização do”jeitinho” torna o país ineficiente e pouco confiável.

O brasileiro é um povo criativo. Sempre teve que encontrar soluções para seus problemas. O jeitinho brasileiro é a criatividade do mal. É o lado negro da espontaneidade e da maneira intensa e visceral do brasileiro viver.

O que fazer?

O jeitinho brasileiro só entrará em desuso no país no dia em que as instituições governamentais não forem mais corrompíveis. O exemplo, no caso, tem que vir de cima, e o único ente com força suficiente para interromper este círculo vicioso de corrupção é o governo.

A credibilidade das instituições só será recuperada a partir do momento em que os serviços forem de qualidade para todos, e não só para que o faz à margem das regras. O investimento governamental deve ser na melhoria paulatina dos serviços públicos, automatizando-os se possível. O e-governo pode ser uma arma eficiente nisso, visto que serviços governamentais feitos pela Internet diminuem a possibilidade de corrupção funcional, uma vez que não há contato direto entre o funcionário e o cidadão que demanda o serviço.

Serviços on-line de qualidade, serviços essenciais (como transportes, por exemplo) de qualidade, atendimento rápido e sem filas, todos esses preceitos são essenciais para a cultura do jeitinho brasileiro acabar.

Também é necessária uma mudança em nossa educação: um país com uma educação de qualidade e que promova o respeito às instituições e a consciência política acaba modificando, no decorrer dos anos, a cultura da população.

O ideal é a formação de círculo virtuoso, inverso ao que existe hoje, com as instituições fazendo seu trabalho com excelência, fazendo os cidadãos acreditarem nelas, e um sistema de educação que promova uma cultura de coletividade e respeito às instituições. Gradativamente a cultura do jeitinho brasileiro será abandonada, por deixar de fazer sentido. Não existe sentido em levar vantagem em algo que já é bom para todos.

E a punição também deve ser grave para quem insiste em levar vantagens indevidas. Deve ser exemplar, para que as pessoas sejam demovidas da idéia. Mas não pode em hipótese alguma ser aplicada sem a melhoria dos serviços públicos para a população, em caráter concomitante.

Conclusão

O brasileiro deve criar valores honrados, ter caráter, admitir sua culpa, sem acusar ninguém, quando faz algo de errado, e pensar sempre em fazer as coisas da maneira certa. Para isso o governo deve facilitar a “maneira certa”, para que ninguém se sinta tentado a fazer da maneira errada.

Abandonar o jeitinho brasileiro é essencial para o brasileiro deixar de ser individualista, para formar um novo caráter enquanto nação, para que cada um deixe de pensar em ter vantagem em tudo. A conclusão é que o brasileiro não deve apenas respeitar as instituições, mas, principalmente, respeitar as pessoas ao redor, e saber que elas tem as mesmas necessidades, anseios e urgências que você.

Ninguém merece viver em um país em que a corrupção não está apenas no governo, mas está em posturas condenáveis, propagadas pelos políticos, empresários, pelo terceiro setor e pela população em geral, de que vale a pena tentar levar vantagem em tudo e recorrer a “jeitinhos”. O “jeitinho” prejudica o caráter não apenas daquele que corrompe ou se deixa corromper. Prejudica o caráter da nação toda. E deve ser combatido a cada dia.

Bibliografia

FAORORaymundo Faoro. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. rev. São Paulo: Globo, 2001.


HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1999

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